Capítulo 5 — Arautos de uma era
melhor
Antes da Reforma, houve por vezes
pouquíssimos exemplares da Escritura Sagrada; mas Deus não consentira que Sua
Palavra fosse totalmente destruída. Suas verdades não deveriam estar ocultas
para sempre. Tão facilmente poderia Ele desacorrentar as palavras da vida como
abrir portas de prisões e desaferrolhar portais de ferro para pôr em liberdade
a Seus servos. Nos vários países da Europa homens eram movidos pelo Espírito de
Deus a buscar a verdade como a tesouros escondidos. Providencialmente guiados
às Santas Escrituras, estudavam as páginas sagradas com interesse profundo.
Estavam dispostos a aceitar a luz, a qualquer custo. Posto que não vissem todas
as coisas claramente, puderam divisar muitas verdades havia muito sepultadas.
Como mensageiros enviados pelo Céu, saíam, rompendo as cadeias do erro e
superstição e chamando aos que haviam estado durante tanto tempo escravizados,
a levantar-se e assegurar sua liberdade.
Com exceção do que se passava
entre os valdenses, a Palavra de Deus estivera durante séculos encerrada em
línguas apenas conhecidas pelos eruditos; chegara, porém, o tempo para que as
Escrituras fossem traduzidas e entregues ao povo dos vários países em sua
língua materna. Passara para o mundo a meia-noite. As horas de trevas estavam a
esvair-se, e em muitas terras apareciam indícios da aurora a despontar.
No século XIV surgiu na
Inglaterra um homem que devia ser considerado “a estrela da manhã da Reforma.”
João Wycliffe foi o arauto da Reforma, não somente para a Inglaterra mas para
toda a cristandade. O grande protesto contra Roma, que lhe foi dado proferir,
jamais deveria silenciar. Aquele protesto abriu a luta de que deveria resultar
a emancipação de indivíduos, igrejas e nações.
Wycliffe recebeu educação
liberal, e para ele o temor do Senhor era o princípio da sabedoria. No colégio
se distinguira pela fervorosa piedade bem como por seus notáveis talentos e
perfeito preparo escolar. Em sua sede de saber procurava familiarizar-se com
todo ramo de conhecimento. Foi educado na filosofia escolástica, nos cânones da
igreja e na lei civil, especialmente a de seu próprio país. Em seus trabalhos
subsequentes evidenciou-se o valor destes primeiros estudos. Um conhecimento
proficiente da filosofia especulativa de seu tempo, habilitou-o a expor os
erros dela; e, mediante o estudo das leis civis e eclesiásticas, preparou-se
para entrar na grande luta pela liberdade civil e religiosa. Não só sabia
manejar as armas tiradas da Palavra de Deus, mas também havia adquirido a
disciplina intelectual das escolas e compreendia a tática dos teólogos
escolásticos. O poder de seu gênio e a extensão e proficiência de seus
conhecimentos impunham o respeito de amigos bem como de inimigos. Seus adeptos
viam com satisfação que seu herói ocupava lugar preeminente entre os espíritos
dirigentes da nação; e seus inimigos eram impedidos de lançar o desprezo à
causa da Reforma, exprobrando a ignorância ou fraqueza do que a mantinha.
Quando ainda no colégio, Wycliffe
passou a estudar as Escrituras Sagradas. Naqueles primitivos tempos em que a
Bíblia existia apenas nas línguas antigas, os eruditos estavam habilitados a
encontrar o caminho para a fonte da verdade, o qual se achava fechado às
classes incultas. Assim, já fora preparado o caminho para o trabalho futuro de
Wycliffe como Reformador. Homens de saber haviam estudado a Palavra de Deus e
encontrado a grande verdade de Sua livre graça, ali revelada. Em seus ensinos
tinham disseminado o conhecimento desta verdade e levado outros a volver às
Sagradas Escrituras.
Quando a atenção de Wycliffe se
volveu às Escrituras, passou a pesquisá-las com a mesma proficiência que o
havia habilitado a assenhorear-se da instrução das escolas. Até ali tinha ele
sentido grande necessidade que nem seus estudos escolásticos nem o ensino da
igreja puderam satisfazer. Na Palavra de Deus encontrou o que antes em vão
procurara. Ali viu revelado o plano da salvação, e Cristo apresentado como
único advogado do homem. Entregou-se ao serviço de Cristo e decidiu-se a
proclamar as verdades que havia descoberto.
Semelhante aos reformadores
posteriores, Wycliffe não previu, ao iniciar a sua obra, até onde ela o
levaria. Não se opôs deliberadamente a Roma. A dedicação à verdade, porém, não
poderia senão levá-lo a conflito com a falsidade. Quanto mais claramente
discernia os erros do papado, mais fervorosamente apresentava os ensinos da
Escritura Sagrada. Via que Roma abandonara a Palavra de Deus pela tradição
humana; destemidamente acusava o sacerdócio de haver banido as Escrituras, e
exigia que a Bíblia fosse devolvida ao povo e de novo estabelecida sua
autoridade na igreja. Wycliffe era ensinador hábil e ardoroso, eloquente
pregador, e sua vida diária era uma demonstração das verdades que pregava. O
conhecimento das Escrituras, a força de seu raciocínio, a pureza de sua vida e
sua coragem e integridade inflexíveis conquistaram-lhe geral estima e
confiança. Muitas pessoas se tinham tornado descontentes com sua fé anterior,
ao verem a iniquidade que prevalecia na Igreja de Roma, e saudaram com
incontida alegria as verdades expostas por Wycliffe; mas os dirigentes papais
encheram-se de raiva quando perceberam que este reformador conquistava maior
influência que a deles mesmos.
Wycliffe era perspicaz
descobridor de erros e atacou destemidamente muitos dos abusos sancionados pela
autoridade de Roma. Quando agia como capelão do rei, assumiu ousada atitude
contra o pagamento do tributo que o papa pretendia do monarca inglês e mostrou
que a pretensão papal de autoridade sobre os governantes seculares era
contrária tanto à razão como à revelação. As exigências do papa tinham excitado
grande indignação e os ensinos de Wycliffe exerceram influência sobre o
espírito dos dirigentes do país. O rei e os nobres uniram-se em negar as
pretensões do pontífice à autoridade temporal, e na recusa do pagamento do
tributo. Destarte, um golpe eficaz foi desferido contra a supremacia papal na
Inglaterra.
Outro mal contra que o reformador
sustentou longa e resoluta batalha, foi a instituição das ordens dos frades
mendicantes. Estes frades enxameavam na Inglaterra, lançando uma nódoa à
grandeza e prosperidade da nação. A indústria, a educação, a moral, tudo sentia
a influência debilitante. A vida de ociosidade e mendicidade dos monges não só
era grande escoadouro dos recursos do povo, mas lançava o desdém ao trabalho
útil. A juventude se desmoralizava e corrompia. Pela influência dos frades
muitos eram induzidos a entrar para o claustro e dedicar-se à vida monástica, e
isto não só sem o consentimento dos pais, mas mesmo sem seu conhecimento e
contra as suas ordens. Um dos primitivos padres da Igreja de Roma, insistindo
sobre as exigências do monasticismo acima das obrigações do amor e dever
filial, declarou: “Ainda que teu pai se encontrasse deitado diante de tua
porta, chorando e lamentando, e a tua mãe te mostrasse o corpo que te carregou
e os seios que te nutriram, tê-los-ás de pisar a pés e ir avante diretamente a
Cristo.” Por esta “monstruosa desumanidade”, como mais tarde Lutero a
denominou, “que cheira mais a lobo e a tirano do que a cristão ou homem”,
empedernia-se o coração dos filhos contra os pais.
— Vida de Lutero, de Barnas
Sears. Assim, os dirigentes papais, como os fariseus de outrora, tornavam sem
efeito o mandamento de Deus, com a sua tradição. Assim se desolavam lares, e
pais ficavam privados da companhia dos filhos e filhas.
Mesmo os estudantes das
universidades eram enganados pelas falsas representações dos monges, e
induzidos a unir-se às suas ordens. Muitos mais tarde se arrependiam deste
passo, vendo que haviam prejudicado sua própria vida e causado tristeza aos
pais; mas, uma vez presos na armadilha, era-lhes impossível obter liberdade.
Muitos pais, temendo a influência dos monges, recusavam-se a enviar os filhos
às universidades. Houve assinalada redução no número de estudantes que frequentavam
os grandes centros de ensino. As escolas feneciam e prevalecia a ignorância.
O papa conferira a esses monges a
faculdade de ouvir confissões e conceder perdão. Isto se tornou fonte de
grandes males. Inclinados a aumentar seus lucros, os frades estavam tão
dispostos a conceder absolvição que criminosos de todas as espécies a eles
recorriam e, como resultado, aumentaram rapidamente os vícios mais detestáveis.
Os doentes e os pobres eram deixados a sofrer, enquanto os donativos que lhes
deveriam suavizar as necessidades, iam para os monges que com ameaças exigiam
esmolas do povo, denunciando a impiedade dos que retivessem os donativos de
suas ordens. Apesar de sua profissão de pobreza, a riqueza dos frades aumentava
constantemente e seus suntuosos edifícios e lautas mesas tornavam mais notória
a pobreza crescente da nação. E enquanto despendiam o tempo em luxo e prazeres,
enviavam em seu lugar homens ignorantes que apenas podiam narrar histórias
maravilhosas, lendas, pilhérias para divertir o povo e torná-lo ainda mais
completamente iludido pelos monges. Contudo, os frades continuavam a manter o
domínio sobre as multidões supersticiosas, e a levá-las a crer que todo dever
religioso se resumia em reconhecer a supremacia do papa, adorar os santos e
fazer donativos aos monges, e que isto era suficiente para lhes garantir lugar
no Céu.
Homens de saber e piedade haviam
trabalhado em vão para efetuar uma reforma nessas ordens monásticas; Wycliffe,
porém, com intuição mais clara, feriu o mal pela raiz, declarando que a própria
organização era falsa e que deveria ser abolida. Despertavam-se discussões e
indagações. Atravessando os monges o país, vendendo perdões do papa, muitos
foram levados a duvidar da possibilidade de comprar perdão com dinheiro e
suscitaram a questão se não deveriam antes buscar de Deus o perdão em vez de
buscá-lo do pontífice de Roma. Não poucos se alarmavam com a capacidade dos
frades, cuja avidez parecia nunca se satisfazer. “Os monges e sacerdotes de
Roma”, diziam eles, “estão-nos comendo como um câncer. Deus nos deve livrar, ou
o povo perecerá.” — D’Aubigné. Para encobrir sua avareza, pretendiam os monges
mendicantes seguir o exemplo do Salvador, declarando que Jesus e Seus
discípulos haviam sido sustentados pela caridade do povo. Esta pretensão
resultou em prejuízo de sua causa, pois levou muitos à Escritura Sagrada, a fim
de saberem por si mesmos a verdade — resultado que de todos os outros era o menos
desejado de Roma. A mente dos homens foi dirigida à Fonte da verdade, que era o
objetivo de Roma ocultar.
Wycliffe começou a escrever e
publicar folhetos contra os frades, porém não tanto procurando entrar em
discussão com eles como despertando o espírito do povo aos ensinos da Bíblia e
seu Autor. Ele declarava que o poder do perdão ou excomunhão não o possuía o
papa em maior grau do que os sacerdotes comuns, e que ninguém pode ser
verdadeiramente excomungado a menos que primeiro haja trazido sobre si a
condenação de Deus. De nenhuma outra maneira mais eficaz poderia ele ter
empreendido a demolição da gigantesca estrutura de domínio espiritual e
temporal que o papa erigira, e em que alma e corpo de milhões se achavam
retidos em cativeiro.
De novo foi Wycliffe chamado para
defender os direitos da coroa inglesa contra as usurpações de Roma; e, sendo
designado embaixador real, passou dois anos na Holanda, em conferência com os
emissários do papa. Ali entrou em contato com eclesiásticos da França, Itália e
Espanha, e teve oportunidade de devassar os bastidores e informar-se de muitos
fatos que lhe teriam permanecido ocultos na Inglaterra. Aprendeu muita coisa
que o orientaria em seus trabalhos posteriores. Naqueles representantes da
corte papal lia ele o verdadeiro caráter e objetivos da hierarquia. Voltou para
a Inglaterra a fim de repetir mais abertamente e com maior zelo seus ensinos
anteriores, declarando que a cobiça, o orgulho e o engano eram os deuses de
Roma.
Num de seus folhetos disse ele,
falando do papa e seus coletores: “Retiram de nosso país os meios de
subsistência dos pobres, e muitos milhares de marcos, anualmente, do dinheiro
do rei, para sacramentos e coisas espirituais, o que é amaldiçoada heresia de
simonia, e fazem com que toda a cristandade consinta nesta heresia e a
mantenha. E, na verdade, ainda que nosso reino tivesse uma gigantesca montanha
de ouro, e nunca homem algum dali tirasse a não ser somente o coletor deste
orgulhoso e mundano sacerdote, com o tempo ela se esgotaria; pois sempre ele
tira dinheiro de nosso país e nada devolve a não ser a maldição de Deus pela
sua simonia.” — História da Vida e Sofrimentos de J. Wycliffe, do Rev. João
Lewis.
Logo depois de sua volta à
Inglaterra, Wycliffe recebeu do rei nomeação para a reitoria de Lutterworth.
Isto correspondia a uma prova de que o monarca ao menos não se desagradara de
sua maneira franca no falar. A influência de Wycliffe foi sentida no moldar a
ação da corte, bem como a crença da nação.
Os trovões papais logo se
desencadearam contra ele. Três bulas foram expedidas para a Inglaterra: para a
universidade, para o rei e para os prelados, ordenando todas as medidas
imediatas e decisivas para fazer silenciar o ensinador de heresias. Antes da
chegada das bulas, porém, os bispos, em seu zelo, intimaram Wycliffe a
comparecer perante eles para julgamento. Entretanto, dois dos mais poderosos
príncipes do reino o acompanharam ao tribunal; e o povo, rodeando o edifício e
invadindo-o, intimidou de tal maneira os juízes que o processo foi temporariamente
suspenso, sendo-lhe permitido ir-se em paz. Um pouco mais tarde faleceu Eduardo
III, a quem em sua idade avançada os prelados estavam procurando influenciar
contra o reformador, e o anterior protetor de Wycliffe tornou-se regente do
reino.
Mas a chegada das bulas papais
trazia para toda a Inglaterra a ordem peremptória de prisão e encarceramento do
herege. Estas medidas indicavam de maneira direta a fogueira. Parecia certo que
Wycliffe logo deveria cair vítima da vingança de Roma. Mas Aquele que declarou
outrora a alguém: “Não temas, ... Eu sou teu escudo” (Gênesis 15:1), de novo
estendeu a mão para proteger Seu servo.
A morte veio, não para o
reformador, mas para o pontífice que lhe decretara destruição. Gregório XI
morreu, e dispersaram-se os eclesiásticos que se haviam reunido para o processo
de Wycliffe.
A providência de Deus encaminhou
ainda mais os acontecimentos para dar oportunidade ao desenvolvimento da
Reforma. A morte de Gregório foi seguida da eleição de dois papas rivais. Dois
poderes em conflito, cada um se dizendo infalível, exigiam agora obediência.
Cada qual apelava para os fiéis a fim de o ajudarem a fazer guerra contra o
outro, encarecendo suas exigências com terríveis anátemas contra os adversários
e promessas de recompensas no Céu aos que o apoiavam. Esta ocorrência
enfraqueceu grandemente o poderio do papado. As facções rivais fizeram tudo que
podiam para atacar uma a outra, e durante algum tempo Wycliffe teve repouso.
Anátemas e recriminações voavam de um papa a outro, e derramavam-se torrentes
de sangue para sustentar suas pretensões em conflito. Crimes e escândalos
inundavam a igreja. Nesse ínterim, o reformador, no silencioso retiro de sua
paróquia de Lutterworth, estava trabalhando diligentemente para, dos papas
contendores, dirigir os homens a Jesus, o Príncipe da paz.
O cisma, com toda a contenda e
corrupção que produziu, preparou o caminho para a Reforma, habilitando o povo a
ver o que o papado realmente era. Num folheto que publicou — Sobre o Cisma dos
Papas — Wycliffe apelou para o povo a fim de que considerasse se esses dois
sacerdotes estavam a falar a verdade ao condenarem um ao outro como o
anticristo. “Deus”, disse ele, “não mais quis consentir que o demônio reinasse
em um único sacerdote tal, mas... fez divisão entre dois, de modo que os
homens, em nome de Cristo, possam mais facilmente vencê-los a ambos.” — Vida e
Opiniões de João Wycliffe, de Vaughan.
Wycliffe, a exemplo de seu
Mestre, pregou o evangelho aos pobres. Não contente com espalhar a luz nos
lares humildes em sua própria paróquia de Lutterworth, concluiu que ela deveria
ser levada a todas as partes da Inglaterra. Para realizar isto organizou um
corpo de pregadores, homens simples e dedicados, que amavam a verdade e nada
desejavam tanto como o propagá-la. Estes homens iam por toda parte, ensinando
nas praças, nas ruas das grandes cidades e nos atalhos do interior. Procuravam
os idosos, os doentes e os pobres, e desvendavam-lhes as alegres novas da graça
de Deus.
Como professor de teologia em
Oxford, Wycliffe pregou a Palavra de Deus nos salões da universidade. Tão
fielmente apresentava ele a verdade aos estudantes sob sua instrução, que
recebeu o título de “Doutor do Evangelho”.
Mas a maior obra da vida de
Wycliffe deveria ser a tradução das Escrituras para a língua inglesa. Num livro
— Sobre a Verdade e Sentido das Escrituras — exprimiu a intenção de traduzir a
Bíblia, de maneira que todos na Inglaterra pudessem ler, na língua materna, as
maravilhosas obras de Deus.
Subitamente, porém,
interromperam-se as suas atividades. Posto que não tivesse ainda sessenta anos
de idade, o trabalho incessante, o estudo e os assaltos dos inimigos haviam
posto à prova suas forças, tornando-o prematuramente velho. Foi atacado de
perigosa enfermidade. A notícia disto proporcionou grande alegria aos frades.
Pensavam então que se arrependeria amargamente do mal que tinha feito à igreja
e precipitaram-se ao seu quarto para ouvir-lhe a confissão. Representantes das
quatro ordens religiosas, com quatro oficiais civis, reuniram-se em redor do
suposto moribundo. “Tendes a morte em vossos lábios”, diziam; “comovei-vos com
as vossas faltas, e retratai em nossa presença tudo que dissestes para ofensa
nossa.” O reformador ouviu em silêncio; mandou então seu assistente levantá-lo
no leito e, olhando fixamente para eles enquanto permaneciam esperando a
retratação, naquela voz firme e forte que tantas vezes os havia feito tremer,
disse: “Não hei de morrer, mas viver, e novamente denunciar as más ações dos
frades.” — D’Aubigné. Espantados e confundidos, saíram os monges apressadamente
do quarto.
Cumpriram-se as palavras de
Wycliffe. Viveu a fim de colocar nas mãos de seus compatriotas a mais poderosa
de todas as armas contra Roma, isto é, dar-lhes a Escritura Sagrada, o meio
indicado pelo Céu para libertar, esclarecer e evangelizar o povo. Muitos e
grandes obstáculos havia a vencer na realização dessa obra. Wycliffe achava-se
sobrecarregado de enfermidades; sabia que apenas poucos anos lhe restavam para
o trabalho; via a oposição que teria de enfrentar; mas, animado pelas promessas
da Palavra de Deus, foi avante sem intimidar-se de coisa alguma. Quando em
pleno vigor de suas capacidades intelectuais, rico em experiências, foi ele
preservado e preparado por especial providência de Deus para esse trabalho — o
maior por ele realizado. Enquanto a cristandade se envolvia em tumultos, o reformador
em sua reitoria de Lutterworth, alheio à tempestade que fora esbravejava,
dedicava-se à tarefa que escolhera.
Concluiu-se, por fim, o trabalho:
a primeira tradução inglesa que já se fizera da Escritura Sagrada. A Palavra de
Deus estava aberta para a Inglaterra. O reformador não temia agora prisão ou
fogueira. Colocara nas mãos do povo inglês uma luz que jamais se extinguiria.
Dando a Bíblia aos seus compatriotas, fizera mais no sentido de quebrar os
grilhões da ignorância e do vício, mais para libertar e enobrecer seu país, do
que já se conseguira pelas mais brilhantes vitórias nos campos de batalha.
Sendo ainda desconhecida a arte
de imprimir, era unicamente por trabalho moroso e fatigante que se podiam
multiplicar os exemplares da Escritura Sagrada. Tão grande era o interesse por
se obter o Livro, que muitos voluntariamente se empenharam na obra de o
transcrever; mas era com dificuldade que os copistas podiam atender aos
pedidos. Alguns dos mais ricos compradores desejavam a Bíblia toda. Outros compravam
apenas parte. Em muitos casos várias famílias se uniam para comprar um
exemplar. Assim, a Bíblia de Wycliffe logo teve acesso aos lares do povo.
O apelo para a razão despertou os
homens de sua submissão passiva aos dogmas papais. Wycliffe ensinava agora
doutrinas distintivas do protestantismo: salvação pela fé em Cristo, e a
infalibilidade das Escrituras unicamente. Os pregadores que enviara
disseminaram a Bíblia, juntamente com os escritos do reformador, e com êxito
tal que a nova fé foi aceita por quase metade do povo da Inglaterra.
O aparecimento das Escrituras
produziu estupefação às autoridades da igreja. Tinham agora de enfrentar um
fator mais poderoso do que Wycliffe, fator contra o qual suas armas pouco
valeriam. Não havia nesta ocasião na Inglaterra lei alguma proibindo a Bíblia,
pois nunca dantes fora ela publicada na língua do povo. Semelhantes leis foram
depois feitas e rigorosamente executadas. Entretanto, apesar dos esforços dos
padres, houve durante algum tempo oportunidade para a circulação da Palavra de
Deus.
Novamente os chefes papais
conspiraram para fazer silenciar a voz do reformador. Perante três tribunais
foi ele sucessivamente chamado a juízo, mas sem proveito. Primeiramente um
sínodo de bispos declarou heréticos os seus escritos e, ganhando o jovem rei
Ricardo II para o seu lado, obtiveram um decreto real sentenciando à prisão
todos os que professassem as doutrinas condenadas.
Wycliffe apelou do sínodo para o
Parlamento; destemidamente acusou a hierarquia perante o conselho nacional e
pediu uma reforma dos enormes abusos sancionados pela igreja. Com poder
convincente, descreveu as usurpações e corrupções da sé papal. Seus inimigos
ficaram confusos. Os que eram amigos de Wycliffe e o apoiavam, tinham sido
obrigados a ceder, e houvera a confiante expectativa de que o próprio
reformador, em sua avançada idade, só e sem amigos, curvar-se-ia ante a
autoridade combinada da coroa e da tiara. Mas, em vez disso, os adeptos de Roma
viram-se derrotados. O Parlamento, despertado pelos estimuladores apelos de
Wycliffe, repeliu o edito perseguidor e o reformador foi novamente posto em
liberdade.
Pela terceira vez foi ele chamado
a julgamento, e agora perante o mais elevado tribunal eclesiástico do reino.
Ali não se mostraria favor algum para com a heresia. Ali, finalmente, Roma
triunfaria e a obra do reformador seria detida. Assim pensavam os romanistas.
Se tão-somente cumprissem seu propósito, Wycliffe seria obrigado a renunciar
suas doutrinas, ou sairia da corte diretamente para as chamas.
Wycliffe, porém, não se retratou;
não usou de dissimulação. Destemidamente sustentou seus ensinos e repeliu as
acusações de seus perseguidores. Perdendo de vista a si próprio, sua posição e
o momento, citou os ouvintes perante o tribunal divino, e pesou seus sofismas e
enganos na balança da verdade eterna. Sentiu-se o poder do Espírito Santo na
sala do concílio. Os ouvintes ficaram como que fascinados. Pareciam não ter
forças para deixar o local. Como setas da aljava do Senhor, as palavras do
reformador penetravam-lhes a alma. A acusação da heresia que contra ele haviam
formulado, com poder convincente reverteu contra eles mesmos. Por que,
perguntava ele, ousavam espalhar seus erros? Por amor do lucro, para da graça
de Deus fazerem mercadoria?
“Com quem”, disse finalmente,
“julgais estar a contender? com um ancião às bordas da sepultura? Não! com a
Verdade — Verdade que é mais forte do que vós, e vos vencerá.” — Wylie. Assim
dizendo, retirou-se da assembléia e nenhum de seus adversários tentou
impedi-lo.
A obra de Wycliffe estava quase
terminada; a bandeira da verdade que durante tanto tempo empunhara, logo lhe
deveria cair da mão; mas, uma vez mais, deveria ele dar testemunho do
evangelho. A verdade devia ser proclamada do próprio reduto do reino do erro.
Wycliffe foi chamado a julgamento perante o tribunal papal em Roma, o qual
tantas vezes derramara o sangue dos santos. Não ignorava o perigo que o
ameaçava; contudo, teria atendido à chamada se um ataque de paralisia lhe não
houvesse tornado impossível efetuar a viagem. Mas, se bem que sua voz não
devesse ser ouvida em Roma, poderia falar por carta, e isto se decidiu a fazer.
De sua reitoria o reformador escreveu ao papa uma carta que, conquanto
respeitosa nas expressões e cristã no espírito, era incisiva censura à pompa e
orgulho da sé papal.
“Em verdade me regozijo”, disse,
“por manifestar e declarar a todo homem a fé que mantenho, e especialmente ao
bispo de Roma, o qual, como suponho ser íntegro e verdadeiro, de mui boa
vontade confirmará minha dita fé, ou, se é ela errônea, corrigi-la-á.
“Em primeiro lugar, creio que o
evangelho de Cristo é o corpo todo da lei de Deus. ... Declaro e sustento que o
bispo de Roma, desde que se considera o vigário de Cristo aqui na Terra, está
obrigado, mais do que todos os outros homens, à lei do evangelho. Pois a
grandeza entre os discípulos de Cristo não consistia na dignidade e honras
mundanas, mas em seguir rigorosamente, e de perto, a Cristo em Sua vida e
maneiras. ... Jesus, durante o tempo de Sua peregrinação na Terra, foi homem
paupérrimo, desdenhando e lançando de Si todo o domínio e honra mundanos. ...
“Nenhum homem fiel deveria seguir
quer ao próprio papa, quer a qualquer dos santos, a não ser nos pontos em que
seguirem ao Senhor Jesus Cristo; pois Pedro e os filhos de Zebedeu, desejando
honras mundanas, contrárias ao seguimento dos passos de Cristo, erraram, e
portanto nestes erros não devem ser seguidos. ...
“O papa deve deixar ao poder
secular todo o domínio e governo temporal, e neste sentido exortar e persuadir
eficazmente todo o clero; pois assim fez Cristo, e especialmente por Seus
apóstolos.
Por conseguinte, se errei em
qualquer destes pontos, submeter-me-ei muito humildemente à correção, mesmo
pela morte, se assim for necessário; e se eu pudesse agir segundo minha vontade
ou desejo, certamente me apresentaria em pessoa perante o bispo de Roma;
mas o Senhor determinou o
contrário, e ensinou-me a obedecer antes a Deus do que aos homens.”
Finalizando, disse: “Oremos a
nosso Deus para que Ele de tal maneira influencie nosso papa Urbano VI,
conforme já começou a fazer, que juntamente com o clero possa seguir ao Senhor
Jesus Cristo na vida e nos costumes, e com eficácia ensinar o povo, e que eles
de igual maneira, fielmente os sigam nisso.” — Atos e Monumentos, de Foxe.
Assim Wycliffe apresentou ao papa
e aos cardeais a mansidão e humildade de Cristo, mostrando não somente a eles
mesmos, mas a toda a cristandade, o contraste entre eles e o Mestre, a quem
professavam representar.
Wycliffe esperava plenamente que
sua vida seria o preço de sua fidelidade. O rei, o papa e os bispos estavam
unidos para leválo a ruína, e parecia certo que, quando muito, em poucos meses
o levariam à fogueira. Mas sua coragem não se abalou. “Por que falais em
procurar longe a coroa do martírio?” dizia. “Pregai o evangelho de Cristo aos
altivos prelados e o martírio não vos faltará. Quê! viveria eu e estaria
silencioso? ... Nunca! Venha o golpe, eu o estou aguardando.” — D’Aubigné.
Mas Deus, em Sua providência,
ainda escudou a Seu servo. O homem que durante toda a vida permanecera
ousadamente na defesa da verdade, diariamente em perigo de vida, não deveria
cair vítima do ódio de seus adversários. Wycliffe nunca procurara escudar-se a
si mesmo, mas o Senhor lhe fora o protetor; e agora, quando seus inimigos
julgavam segura a presa, a mão de Deus o removeu para além de seu alcance. Em
sua igreja, em Lutterworth, na ocasião em que ia ministrar a comunhão, caiu
atacado de paralisia, e em pouco tempo rendeu a vida.
Deus
designara a Wycliffe a sua obra. Pusera-lhe na boca a Palavra da verdade e
dispusera uma guarda a seu redor para que esta Palavra pudesse ir ao povo. A
vida fora-lhe protegida e seus trabalhos se prolongaram, até ser lançado o
fundamento para a grande obra da Reforma.
Wycliffe saíra das trevas da
Idade Média. Ninguém havia que tivesse vivido antes dele, por meio de cuja obra
pudesse modelar seu sistema de reforma. Suscitado como João Batista para
cumprir uma missão especial, foi ele o arauto de uma nova era. Contudo, no
sistema de verdades que apresentava, havia uma unidade e perfeição que os
reformadores que o seguiram não excederam e que alguns não atingiram, mesmo cem
anos mais tarde. Tão amplo e profundo foi posto o fundamento, tão firme e
verdadeiro o arcabouço, que não foi necessário serem reconstruídos pelos que
depois dele vieram.
O grande movimento inaugurado por
Wycliffe, o qual deveria libertar a consciência e o intelecto e deixar livres
as nações, durante tanto tempo jungidas ao carro triunfal de Roma, teve sua
fonte na Escritura Sagrada. Ali se encontrava a origem da corrente de
bemaventurança,que,como a água da vida,tem manado durante gerações desde o
século XIV. Wycliffe aceitava as Sagradas Escrituras com implícita fé, como a
inspirada revelação da vontade de Deus, como suficiente regra de fé e prática.
Fora educado de modo a considerar a Igreja de Roma como autoridade divina,
infalível, e aceitar com indiscutível reverência os ensinos e costumes
estabelecidos havia um milênio; mas de tudo isto se desviou para ouvir a santa
Palavra de Deus. Esta era a autoridade que ele insistia com o povo para que
reconhecesse. Em vez da igreja falando pelo papa, declarou ser a única
verdadeira autoridade a voz de Deus falando por Sua Palavra. E não somente
ensinava que a Bíblia é a perfeita revelação da vontade de Deus, mas que o
Espírito Santo é o seu único intérprete, e que todo homem, pelo estudo de seus
ensinos, deve aprender por si próprio o dever. Desta maneira fazia volver o
espírito, do papa e da igreja de Roma, para a Palavra de Deus.
Wycliffe foi um dos maiores
reformadores. Na amplidão de seu intelecto, clareza de pensamentos, firmeza em
manter a verdade e ousadia para defendê-la, por poucos dos que após ele vieram
foi igualado. Pureza de vida, incansável diligência no estudo e trabalho, incorruptível
integridade, amor e fidelidade cristã no ministério caracterizaram o primeiro
dos reformadores. E isto apesar das trevas intelectuais e corrupção moral da
época de que ele emergiu.
O caráter de Wycliffe é
testemunho do poder educador e transformador das Sagradas Escrituras. Foram
estas que dele fizeram o que foi. O esforço para aprender as grandes verdades
da revelação, comunica frescor e vigor a todas as faculdades. Expande a mente,
aguça a percepção, amadurece o juízo. O estudo da Bíblia enobrece a todo
pensamento, sentimento e aspiração, como nenhum outro estudo o pode fazer. Dá
estabilidade de propósitos, paciência, coragem e fortaleza; aperfeiçoa o
caráter e santifica a alma. O esquadrinhar fervoroso e reverente das
Escrituras, pondo o espírito do estudante em contato direto com a mente
infinita, daria ao mundo homens de intelecto mais forte e mais ativo, bem como
de princípios mais nobres, do que os que já existiram como resultado do mais
hábil ensino que proporciona a filosofia humana. “A exposição das Tuas palavras
dá luz”, diz o salmista; “dá entendimento aos símplices.” Salmos 119:130.
As doutrinas ensinadas por
Wycliffe continuaram durante algum tempo a espalhar-se; seus seguidores,
conhecidos como wyclifitas e lolardos, não somente encheram a Inglaterra, mas
espalharam-se em outros países, levando o conhecimento do evangelho. Agora que
seu guia fora tomado dentre os vivos, os pregadores trabalhavam com zelo maior
do que antes, e multidões se congregavam para ouvi-los. Alguns da nobreza e
mesmo a esposa do rei se encontravam entre os conversos. Em muitos lugares
houve assinalada reforma nos costumes do povo, e os símbolos do romanismo foram
removidos das igrejas. Logo, porém, a impiedosa tempestade da perseguição
irrompeu sobre os que haviam ousado aceitar a Escritura Sagrada como guia. Os
monarcas ingleses, ávidos de aumentar seu poder mediante o apoio de Roma, não
hesitaram em sacrificar os reformadores. Pela primeira vez na história da
Inglaterra a fogueira foi decretada contra os discípulos do evangelho.
Martírios sucederam a martírios. Os defensores da verdade, proscritos e
torturados, podiam tão-somente elevar seus clamores ao ouvido do Senhor dos
exércitos. Perseguidos como inimigos da igreja e traidores do reino,
continuaram a pregar em lugares secretos, encontrando abrigo o melhor que
podiam nos humildes lares dos pobres, e muitas vezes refugiando-se mesmo em
brenhas e cavernas.
Apesar da fúria da perseguição,
durante séculos continuou a ser proferido um protesto calmo, devoto, fervoroso,
paciente, contra as dominantes corrupções da fé religiosa. Os crentes daqueles
primitivos tempos tinham apenas conhecimento parcial da verdade, mas haviam
aprendido a amar e obedecer à Palavra de Deus, e pacientemente sofriam por sua
causa. Como os discípulos dos dias apostólicos, muitos sacrificavam suas posses
deste mundo pela causa de Cristo. Aqueles a quem era permitido permanecer em
casa, abrigavam alegremente os irmãos banidos; e, quando eles também eram
expulsos, animosamente aceitavam a sorte dos proscritos. Milhares, é verdade,
aterrorizados pela fúria dos perseguidores, compravam a liberdade com
sacrifício da fé, e saíam das prisões vestidos com a roupa dos penitentes, a
fim de publicar sua abjuração. Mas não foi pequeno o número — e entre estes
havia homens de nascimento nobre bem como humildes e obscuros — dos que deram
destemido testemunho da verdade nos cubículos dos cárceres, nas “Torres dos
Lolardos”, e em meio de tortura e chamas, regozijando-se de que tivessem sido
considerados dignos de conhecer a “comunicação de Suas aflições”.
Os romanistas não haviam
conseguido executar sua vontade em relação a Wycliffe durante a vida deste, e
seu ódio não se satisfez enquanto o corpo do reformador repousasse em sossego
na sepultura. Por decreto do concílio de Constança, mais de quarenta anos
depois de sua morte,seus ossos foram exumados e publicamente queimados, e as cinzas
lançadas em um riacho vizinho. “Esse riacho”, diz antigo escritor, “levou suas
cinzas para o Avon, o Avon para o Severn, o Severn para os pequenos mares, e
estes para o grande oceano. E assim as cinzas de Wycliffe são o emblema de sua
doutrina, que hoje está espalhada pelo mundo inteiro.” — História Eclesiástica
da Bretanha, de T. Fuller. Pouco imaginaram os inimigos a significação de seu
ato perverso.
Foi mediante os escritos de
Wycliffe que João Huss, da Boêmia, foi levado a renunciar a muitos erros do
romanismo e entrar na obra da Reforma. E assim é que nesses dois países tão
grandemente separados, foi lançada a semente da verdade. Da Boêmia a obra
estendeu-se para outras terras. O espírito dos homens foi dirigido para a
Palavra de Deus, havia tanto esquecida. A mão divina estava a preparar o
caminho para a Grande Reforma.
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